Enteropatógenos associados à doença diarréica em lactentes de áreas urbanas pobres de Porto Velho, Rondônia: um estudo preliminar
Vol. 96(5): 621-625, Jul 2001
Patrícia Puccinelli Orlandi+, Tatiane Silva, Gleiciene Felix Magalhães, Fabiana Alves, Roberto Penna de Almeida Cunha, Rui Durlacher, Luiz Hildebrando Pereira da Silva
Centro de Pesquisa em Medicina Tropical, Rodovia BR 364, km 4.5, 78970-900 Porto Velho, RO, Brasil
Cento e trinta casos de diarréia e 43 controles de idade, 0 a 5 anos, foram estudados em uma unidade ambulatorial pediátrica de uma área peri urbana pobre de Porto Velho, Rondônia. Oitenta por cento dos casos de diarréia foram observados nos grupos com menos de 2 anos de idade. O rotavírus (19,2%) foi o enteropatógeno mais freqüente associado à diarréia, seguido por Shigella flexneri (6,15%) e S. sonnei (1,5%) e Salmonella sp. (6,9%). Quatro casos de E. coli enterotoxigênica (3,1%), E. coli enteropatogênica (EPEC)(2,3%), um caso de E. coli enteroinvasiva (0,8%) e um caso de Yersinia enterocolitica (0,8%) também foram identificados. As infecções mistas foram freqüentes, associando rotavírus, EPEC e Salmonella sp. com Entamoeba histolytica e Giardia lamblia.
Palavras-chave: doença diarréica – enteropatógenos – rotavírus – epidemiologia – Rondônia – Brasil
Doença diarréica é responsável por uma estimativa anual de cinco milhões de mortes entre crianças menores de 5 anos em todo o mundo (Georges et al. 1984). Os principais fatores de risco para a morbi-mortalidade da diarréia são bem conhecidos e estão relacionados à má qualidade de vida, falta de saneamento e abastecimento de água limpa para a maioria da população que vive em áreas pobres dos países em desenvolvimento.
Relatórios mostram que a diarréia está presente como uma importante doença infantil em muitas áreas dos países da América Latina e é responsável por mais de 20% da mortalidade infantil (Berna et al. 1992). No Brasil, a doença diarréica está presente em todo o país e ainda representa uma das principais causas de mortalidade infantil nas áreas periurbanas e rurais mais pobres das regiões Nordeste e Norte (Guerrant & Kirchhoff 1983).
Um estudo longitudinal realizado de 1990 a 1992 na cidade de Belém, na região leste da Amazônia, produziu taxas de 5,9 episódios de diarréia por criança/ano (Linhares 1997).
Menos dados recentes de Fortaleza, na região Nordeste do país, mostraram que o número de episódios de diarréia na faixa etária de 6 a 12 meses excede 7 e 9 por pessoa por ano entre as famílias das áreas urbanas pobres e rurais pobres, respectivamente, diminuindo progressivamente para dois episódios por ano entre os adultos (Guerrant & Kirchhoff 1983). Até o momento, nenhum levantamento foi realizado tanto em Rondônia quanto na região oeste da Amazônia com o objetivo de estabelecer a incidência de doenças diarréicas, entretanto, registros dos serviços oficiais de saúde indicam que a diarréia é a principal causa de mortalidade entre crianças de 0 a 5 anos (Plano Plurianual de Saúde de Rondônia 1996).
Estudos transversais têm sido desenvolvidos nas regiões Sul e Sudeste do Brasil a fim de identificar agentes etiológicos associados à diarréia, bem como para avaliar as características epidemiológicas e clínicas da doença (Riley et al. 1984, Trabulsi et al. 1985a, Gomes et al. 1991). Alguns estudos têm sido realizados na região Nordeste, particularmente em Fortaleza (Guerrant & Kirchhoff 1983) e Recife (Leal et al. 1988). Nenhum estudo foi realizado na região norte da Amazônia, do Brasil, com exceção de estudos específicos sobre rotavírus em Belém.
Apresentamos aqui dados preliminares sobre a etiologia e características clínicas da diarréia entre crianças de 0 a 5 anos de idade, residentes em uma área urbana pobre, que foram encaminhadas para uma unidade ambulatorial pediátrica em Porto Velho, Rondônia (região oeste da Amazônia). As freqüências relativas de enteropatógenos são semelhantes às descritas na região Nordeste do Brasil.
MATERIAIS E MÉTODOS
RESULTADOS
DISCUSSÃO
ACONHECIMENTOS
MATERIAIS E MÉTODOS
Área de estudo – O estudo foi realizado entre julho de 1998 e março de 1999 pelo pessoal do Centro de Pesquisa em Medicina Tropical (CEPEM), Porto Velho, na unidade de saúde ambulatorial “Policlínica Hamilton Gondin”. Em Porto Velho, capital, houve um aumento significativo da população nas últimas três décadas, resultando em migração de diferentes áreas do Brasil após a construção da estrada “BR364” que liga a cidade às regiões Centro e Sul do país. A população atual da cidade é de cerca de 200.000 habitantes. A cidade tem um desenho geométrico moderno, mas carece de um sistema de saneamento adequado. A “Policlínica” está localizada na periferia pobre da cidade do norte. O abastecimento de água potável está limitado a uma baixa proporção de residências de idade e a rede de esgoto está ausente, todas as casas têm banheiros de fossa.
Studo – Cento e trinta bebês de 0 a 5 anos de idade foram levados pelas mães para a “Policlínica” por causa da doença diarréica; além disso, 43 bebês de controle não diarréico de idade da “Policlínica” para a “Policlínica” foram selecionados para o estudo. Os pediatras da equipe do CEPEM entrevistaram os adultos acompanhantes, obtiveram o consentimento livre e esclarecido por escrito, preencheram um questionário e realizaram o exame físico. Foi dada especial atenção à história passada de sintomas, número de episódios de diarréia, febre (temperatura axilar > 37o.8), vômitos, desidratação e presença de muco e sangue nas fezes.
Métodos laboratoriais – Amostras fecais foram coletadas após a evacuação natural ou por estimulação com um supositório de glicerina. As amostras foram divididas em duas frações: uma fração foi usada para exame parasitológico e teste de rotavírus usando Slidex Kit (Biomerieux). A segunda alíquota foi cultivada de acordo com os procedimentos bacteriológicos padrão. Resumidamente, cerca de 3 g de fezes foram suspensas em 3 ml de PBS e, colocadas nos seguintes meios selectivos: MacConkey, SS e ágar verde brilhante (após enriquecimento em caldo tetrathionate contendo 40 µg/ml de novobiocina) para isolamento e identificação das seguintes bactérias enteropatogênicas: enteropatogênica Escherichia coli (EPEC), enterohemorrágica (produtora de toxinas tipo Shiga-) E. coli (EHEC), enteroinvasiva E. coli (EIEC), Shigella, Salmonella sp., espécies Yersinia, Campylobacter jejuni e C. coli. As placas foram incubadas a 37oC durante 24-48 h, excepto as utilizadas para identificar as espécies de Campylobacter; estas foram detectadas utilizando placas com Skirrow modificado, seguidas de uma incubação a 42oC durante 48 h em frasco Gaspak.
Cinco colônias positivas típicas de E. coli e uma colônia de lactose negativa de diferentes tipos morfológicos foram cultivadas em placas de ágar MacConkey, assim como colônias de lactose positiva e negativa isoladas em SS e placas de ágar verde brilhante foram identificadas por testes bioquímicos usando um Kit de milicitrato de EPM (ProBac, Brasil). Colônias semelhantes à espécie Campylobacter, crescendo em placas Skirrow modificadas, foram submetidas aos testes de coloração e catalase e oxidase de Gram para confirmação do gênero. Cepas de E. coli isoladas em ágar MacConkey foram submetidas a testes de aglutinação de lâminas usando soros polivalentes contra os serogrupos EPEC A, B e C. Isolados não aglutinantes foram testados com anti-soro contra o serogrupo EHEC O157 e com anti-soro polivalente contra os serogrupos EIEC A e B. Isolados identificados por testes bioquímicos como espécies Shigella e Yersinia foram serotipados por técnicas padrão. Os anti-soros comercialmente disponíveis da ProBac e Promicro (São Paulo) foram utilizados para a determinação dos serotipos.
E. coli isolados não pertencentes aos serotipos EPEC, EHEC ou EIEC foram testados para produção de enterotoxina termo-labílica (LT), e de enterotoxina estabílica (ST) por PCR. Os primers utilizados (Tornieporth et al. 1995) são complementares às seguintes posições:
59 a 76 (ET-LT1,5’GCGACAAATTATACCGTGCT3′)
765 a 746 (ET-LT2,5’GCGACAAATTATACCGTGCT3′)
79 a 98 (ET-ST1,5’CTGTATTGTCTTTTTCACCT3′) e
260 a 241 (ET-ST2, 5’GCACCCCCGGTACAAGCAGGAT3′).
Amplificação foi realizada por 30 ciclos em um termociclador Perkin-Elmer, como segue: desnaturação por 2 min a 92ºC, recozimento por 1 min a 50oC, e extensão por 2 min a 72oC. O processo de amplificação foi encerrado com uma extensão de 5 min a 72ºC, e os tubos foram rapidamente resfriados a 4oC. Quinze µl de cada amostra foram submetidos a eletroforese em um gel de agarose com 2% de brometo de etídeo a 100V por 2 h para visualizar o produto PCR.
RESULTADOS
Distribuição por grupo de idade da doença diarréica – Uma incidência claramente maior nas faixas etárias de 0 a 2 anos na “Policlínica” foi observada entre os 130 casos de doença diarréica. Os lactentes com menos de 1 ano de idade foram particularmente afetados, respondendo por 62 casos (47,7%), dos quais 28 (21,4%) tinham menos de 6 meses de idade (Tabela I).
Prevalência de enteropatógenos – Entre os 130 casos de doença diarréica, os exames laboratoriais foram negativos para bactérias enteropatogênicas e rotavírus em 16 lactentes. A Tabela II mostra a distribuição dos patógenos encontrados nas fezes de 53 bebês com diarréia (40,7%) e em 2 controles (4,6%). O rotavírus foi o patógeno mais freqüente encontrado (19,2% dos casos de diarréia e 2,4% dos controles). A espécie Shigella foi encontrada em 10 casos (7,7%) e não entre os controles, com alta freqüência de S. flexneri (8/10) em relação a S. sonnei (2/10). Salmonella sp. foi encontrada em 9 casos (6,9% dos casos de diarréia e 1 controle – 2,4%). ETEC foi encontrado em 4 casos de diarréia, todos com enterotoxinas LT e ST. EPEC foi encontrada em 3 casos de diarréia (2 E. coli O111 e 1 E. coli O125). Um caso com EIEC e outro com Y. enterocolitica foram identificados entre crianças diarréicas. Campylobacter foi encontrado tanto em casos de diarréia como em controles. Os exames parasitológicos revelaram 8 casos de cistos de doença diarreica de E. histolytica. Foram encontrados cistos de G. lamblia em 19 casos de diarréia e em 4 controles. As infecções mistas foram relativamente frequentes com a seguinte distribuição: 2 casos de infecções por S. flexneri e rotavirus; 3 casos de infecções envolvendo Salmonella sp. e G. lamblia, e 2 casos de infecção concomitante por EPEC e E. histolytica.
Distribuições por idade – A distribuição etária dos diferentes enteropatógenos encontrados em associação com os 114 casos de doença diarréica é mostrada na Figura. Como já mostrado na Tabela I, 80,5% dos episódios de diarréia ocorreram em faixas etárias abaixo de 2 anos. As taxas de positividade de rotavírus são igualmente altas em bebês com menos de 1 ano de idade, assim como no grupo de idade de 1-2 anos. Outros patógenos são distribuídos por todas as faixas etárias, mas suas freqüências relacionadas não podem ser definidas em vista do baixo número de casos de diarréia observados em crianças com mais de 2 anos de idade.
Características epidemiológicas e clínicas – Enquanto todos os patógenos bacterianos foram igualmente encontrados em casos de diarréia ao longo do período do estudo, o número de casos de rotavírus positivos, 70%, foi maior no período de outubro a fevereiro (estação chuvosa) do que no período entre maio e setembro (estação seca). Os sinais e sintomas clínicos cordados por pediatras na admissão estão resumidos na Tabela III; informações de adultos acompanhantes sobre vômitos também estão incluídas. A febre foi mais frequente nas infecções por rotavírus (60% c2 14,85, P= 0,011, 5df) do que a presença de sangue nas fezes foi um achado comum nos casos de infecções por S. sonnei (80% c2 36,45, P= 0,00001 5df) bem como a ocorrência de vómitos (c2 18,84, P=0,002). A presença de muco nas fezes foi observada em todos os casos de diarréia independentemente da etiologia.
> DISCUSSÃO
No presente estudo, foram estudados 130 casos de diarréia e 43 controles de idade na faixa etária de 0 a 5 anos em uma unidade ambulatorial pediátrica na área peri urbana de Porto Velho. Os casos de diarréia foram concentrados nas faixas etárias abaixo de 2 anos de idade (80%), sugerindo o desenvolvimento progressivo da imunidade contra enteropatógenos. Entretanto, como os casos de diarréia foram detectados passivamente, o hábito parental e social de maior atenção às crianças menores pode explicar parcialmente o viés observado na distribuição etária dos casos. Um levantamento longitudinal realizado em Fortaleza, no qual foi realizada uma busca ativa de casos de diarréia, foi observada uma distribuição etária semelhante (Guerrant & Kirchhoff 1983), o que confirma um papel importante da imunidade para explicar o perfil de distribuição etária.
No que diz respeito aos enteropatógenos associados nos episódios de diarréia, foi encontrada na amostra de Porto Velho uma alta prevalência de rotavírus (19,2% dos casos de diarréia e 2,4% dos controles).
Rotavirus é o enteropatógeno mais freqüente encontrado nas três regiões estudadas (cerca de 20%). Em Porto Velho, como já observado em São Paulo (Trabulsi et al. 1985) e Belém (Linhares 1997), o rotavírus está mais freqüentemente associado à febre (60% dos casos em Porto Velho).
ETEC foi o subgrupo mais freqüente de E. coli associado à diarréia no levantamento de Guerrants em Fortaleza, enquanto foi responsável por uma proporção menor de pacientes no levantamento de Trabulsi em São Paulo (Trabulsi et al. 1985b) e no presente levantamento em Porto Velho. Enquanto as cepas de E. coli positiva à toxina LT sempre foram encontradas nas amostras de São Paulo e Fortaleza, ambas as toxinas LT e ST foram encontradas nos quatro isolados de ETEC de Porto Velho.
Infecções por Salmonella e Shigella, raras nas pesquisas de São Paulo (Gomes et al. 1991), são mais frequentes no Nordeste (Guerrant & Kirchhoff 1983) e em Porto Velho, onde foram associadas a 6,9% e 7,7% dos episódios de doença diarréica, respectivamente. As infecções por Shigella, igualmente frequentes em outros países em desenvolvimento como África do Sul (Scragg et al. 1978), México (Munhoz et al. 1979) e Bangladesh (Stool et al. 1982) são responsáveis pelas formas mais graves de diarréia e, na amostra de Porto Velho, foram frequentemente associadas ao vômito (90%) e à presença de sangue nas fezes (80%), indicando uma grave lesão da mucosa intestinal.
Nenhum caso de infecção da espécie Campylobacter foi detectado em casos de diarréia em Porto Velho, enquanto este enteropatógeno é freqüentemente observado em São Paulo (Gomes et al. 1991). Um caso de diarréia associada a Y. enterocolitica foi observado na amostra de Porto Velho. Embora já descrito em casos de diarréia no Rio de Janeiro, Y. enterocolytica, foi raramente encontrado em outras áreas. É digno de nota que está freqüentemente associada à diarréia no Canadá, sugerindo uma melhor adaptação desta espécie ao ambiente frio.
ACONHECIMENTOS
Ao Dr Luiz Rachid Trabulsi, Instituto Butantã, pelos seus valiosos comentários e pela leitura do manuscrito original.
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Figura | Tabela I | Tabela II | Tabela III